revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

Tentativa de ensaio: adestrar os olhos em algumas palavras

Caroline Veloso

I.

combinei com a sara de enviar um texto-ensaio
para a revista que ela está organizando:
algo que envolvesse nomadismos, deslocamentos, sonhos,

e pensei em escrever algo
que partisse de textos da marília garcia e da ana martins marques
porque já faz um tempo que tenho vontade de escrever algo assim meio ensaístico
partindo dos textos delas
talvez a partir da ideia de viagem
ou de modos de prestar atenção às coisas com estranhamento
que às vezes se associam a uma ideia de estar em viagem
mas também podem ser exercitados
em outros contextos

talvez o exercício de ana martins (em como se fosse a casa) de habitar o apartamento de eduardo jorge, trocar com ele poemas-cartas sobre essa “viagem na própria cidade” (MARQUES, 2017, p. 17), e o exercício de marília garcia (no parque das ruínas) ao elaborar o diário da pont marie possam ser colocados em diálogo.

talvez a pergunta nos dois casos seja: como (vi)ver o lugar? ou: como prestar atenção às coisas?

como põe em cena a julia milward em seu livro intervalos: ou como instalar ateliês em aeroportos, para alguém que se proponha a observar um lugar com propósitos artísticos, alguém se proponha a fazer algo como registrar o instante que passa, de qualquer modo (seja fotografar, filmar ou tomar notas), é possível instalar um ateliê de trabalho, colocar-se “em estado-ateliê” (MILWARD, 2019, p. 10) em quase qualquer canto. apesar de eventuais olhares de estranhamento.

acho que esse termo, “estado-ateliê”, descreve bem o procedimento que acontece no “parque das ruínas”: alguém sempre tentando captar algo que tende a escapar. tentando ver, com a ênfase que esse verbo escrito em itálico tem nos poemas de marília. e talvez “estado-ateliê” descreva também o que acontece em como se fosse a casa: uma busca por entender a paisagem interna do apartamento, e um estudo também do próprio convívio com esse lugar. “ela procura sentir / a respiração da casa, seu sono” (MARQUES, 2017, p. 17).

uma investigação: o que aconteceria “se adestrasse os olhos naquela paisagem / clara e áspera” (MARQUES, 2017, p. 10)?

“é preciso acreditar no poder / da paisagem” (MARQUES, 2017, p. 18-19)

apesar desse exercício de viver em um apartamento alheio (tematizado em como se fosse a casa) parece que muitas vezes nos poemas dos outros livros de ana o que está em cena é uma paisagem imaginada, uma paisagem antecipada. mapas, não viagens. palavras, livros, não o mundo dito real. o que está em jogo é essa fronteira: como, a partir do mapa, a partir das palavras, perceber de outro modo o real?

quando ana se debruça sobre livros ou mapas
(em vez de olhar a paisagem)

quando marília fotografa um lugar para escrever a partir da foto
(e não de sua visão imediata do lugar)

o que acontece?

com ana se pode viajar
“olhando pela janela do ônibus
em busca da linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas” (2015, p.44)

e isso de procurar na cidade real o que se viu em um mapa me interessa

mas os poemas de ana também reconhecem que há algo de inalcançável nas palavras, apesar de tanto:  “posso tocar o seu corpo mas não o seu nome” (2015, p. 63)

sim, acho que uma das tensões mais fortes nos poemas da ana martins marques parece ser a que há entre palavras e coisas, ou entre realidade e representação (além das palavras: mapas, fotografias). nos poemas de ana, “o mundo é como um dicionário fora da ordem alfabética” (2021, p. 23). “Podemos atear fogo / à memória da casa” (2015, p. 59). e se formos à praia das maçãs, “O nome já seria suficiente para nos alegrar / nem era necessário o mar, o corpo jogado ao sol” (2021, p. 50).

há algo similar a isso nos textos da marília garcia mas penso que ocorre de modo um pouco diferente. parece que marília parte com mais frequência de uma observação concreta do mundo para chegar às palavras (ou mapas, ou…) e seus desvios, enganos e ambiguidades, enquanto em ana o movimento inverso talvez seja mais constante: primeiro os livros, o dicionário, as fotos, depois o contraste com o mundo, mundo que muitas vezes decepciona.

para ana, até mesmo o mar pode parecer apenas “um simulacro de mar”, apenas “um painel anunciando o mar” (2021, p. 53). o que se busca no mar, no mar imaginado, excede sua cotidianidade: numerosos banhistas, barulho, mijo.

assim como não se encontra, ao viajar de ônibus, as linhas vermelhas das fronteiras que mostram os mapas, no mar não se encontra exatamente o mar.

o que está em cena aqui talvez seja o limite da ideia de esgotar um local, de dizer tudo o que possa ser dito sobre ele, como sugere o título de georges perec em tentativa de esgotamento de um local parisiense.

mas ninguém vai conseguir dizer tudo. algo vai escapar. o que cada olhar escolhe perceber? o que o meu olhar escolhe?

vai parecer que estou inventando mas quando puxei da prateleira o livro do perec caiu de dentro dele um papel em que eu tinha anotado um sonho sobre ser engolida pelo mar. não costumo anotar sonhos em papéis soltos, tenho um caderno para isso. mas às vezes, no primeiro dia de um mês, quando arranco a folha do calendário que deixo no quarto, gosto de usar o verso dela para escrever algo. talvez pelo tamanho, pela consistência um pouco diferente do papel, talvez porque gosto da ideia de escrever no avesso de algo que servia para demarcar datas.

“não sei interpretar / sonhos ou cartas” (MARQUES, 2009, p. 118)

o exercício é lançar-se a observar o infraordinário
tentar ver alguma coisa
(ou ouvir, ou ler)
e pra que o exercício não pareça solitário
de vez em quando se pode copiar
trechos de diário de outras pessoas
como se tomasse emprestados acontecimentos alheios,
como se alugasse um apartamento um pensamento alheio
(um poema da ana martins diz que na leitura, assim como no sono,
“pensa-se em nós / o pensamento de um outro” (2009, p. 73))

“eu filmo dia após dia em busca de alguma coisa. (…)

                                                                                   leva tempo aprender como fazer” (GARCIA, 2018, p. 35)

II.

este meu texto está bem próximo do tom de um poema da marília garcia
talvez esteja virando uma espécie de vício mas me pego testando essa forma de escrita
com alguma frequência
parece que tomar emprestada a voz de alguém
é um jeito de destravar a minha
quando a tentativa de escrita emperra

a viviane diz em um poema que “quando a gente lê a marília dá mesmo essa vontade de / escrever com a voz que / empresta para ler os poemas dela” (NOGUEIRA, 2019, p. 42)

e concordo

(é claro é se trata de misturar vozes,
repetir deslocando)

“um dispositivo que produza a repetição
pode produzir novas formas de
percepção?” (GARCIA, 2014, p. 22)

isso de testar a repetição
testar o que acontece em uma repetição
seja através da observação de algo
ou da imitação de um procedimento
talvez seja uma maneira de transportar o exercício de ver um lugar
para um lugar mais abstrato: um texto

como ver o que está aqui, nas palavras?
repeti-las é uma forma de entender melhor?

“talvez importe fazer / perguntas” (GARCIA, 2014, p. 32)

aquele conjunto de textos no blog le pays n’est pas la carte
escritos sob efeito do um teste de resistores
(do paulo santana, da sofia mariutti, do fábio saldanha, da gabriela capper, da leda cartum)[1]
me faz pensar que o procedimento de marília se propõe mesmo a ser copiado
até porque talvez nem exista isso de cópia
quando se assume o diálogo com o texto de alguém:
talvez seja algo como um teste de convívio entre vozes
como quando se canta junto

(conviver é sempre um teste, diz a julya reis (2017, p. 47),
em sua dissertação sobre textos da marília garcia)

será que se pode fazer com um texto um exercício como esses do georges perec e da marília garcia: olhar atentamente o texto como se fosse uma paisagem, descrever em detalhe, retornar outro dia e descrever de novo, e de novo, descrever as impressões de leitura, as associações, as hipóteses de interpretação para o que não se entende bem, descrever tudo o que se puder observar, até a exaustão, para ao reler todas as anotações tentar ler algo que não se tinha lido antes? será que seria interessante um registro desse processo, seria interessante tornar públicas as anotações? é preferível como resultado final do exercício um texto revisado, tornado explicativo e coeso, ou o conjunto de notas?

lendo e relendo o livro um teste de resistores
enroscada nos tantos pontos de interrogação de “blind light”
pensando nos procedimentos de escrita da marília garcia, nos furos que ligam os poemas,

gosto dos diálogos que o texto constrói:
as exposições convivendo com os filmes com os livros com as coisas que alguém disse

às vezes meu poema preferido é “no aeroporto schönefeld em berlim”
é bonito imaginar a mochila abarrotada de histórias
dobradas
histórias que escapam quando a mala é aberta para vistoria

penso se seria possível vestir uma história como uma peça de roupa,
como quem veste uma personagem
que pode ser despida quando se desejar
me toca muito essa cena
de estar no aeroporto sem entender direito o que é dito
tentando fazer a vida caber na mala e se adequar às regras da imigração
tentando escolher quais memórias carregar e quais deixar para trás

o marc augé diz que os aeroportos são não-lugares
assim como as estações de metrô as rodoviárias
são espaços de passagem,
não de permanência
percebo que nos poemas da marília
muitas coisas acontecem nesses espaços
que o não-lugar [ou entre-lugar]
talvez seja um espaço propício a estranhamentos
e é do estranhamento, das hesitações e perguntas
que vem a força de muitos poemas nesse teste

voltando ao que dizia sobre não-lugares
tenho me perguntado se poderia pensar em uma relação
entre o não-lugar dos gêneros discursivos
(nem poema nem ensaio)
e esses não-lugares geográficos

ainda não sei

desconfio que não

talvez eu esteja só tentando
criar uma conexão entre dois afetos
colocar juntas coisas que não têm relação
deixá-las juntas
ver se conseguem puxar assunto entre si

penso que se pode passear por lugares
(pelas ruas de uma cidade, mas também pelo interior de um prédio, ou de um apartamento)
mas também por leituras, mapas, fotografias,
e isso de passear, andar em deriva pelas leituras,
é diferente de um trajeto apressado com um ponto de chegada já decidido de antemão

….

quando se deriva assim por leituras é difícil chegar a alguma conclusão
mas fica uma coleção de inacabamentos

felipe charbel, em seu diário de releitura do livro os detetives selvagens, de bolaño, diz, sobre a tentativa de escrever suas impressões do romance: “o que desejo é que esse conhecimento se preserve como me aparece agora: em imagens desconexas, em impressões efêmeras, em frases não formuladas” (2016, p.177). acho que é isso o que desejo também: o que me escapa, o que não consigo dizer.

talvez algo de produtivo aconteça na estrutura fragmentária, uma aproximação entre textos, essas anotações dispersas,

mesmo que “um produtivo só no plano pessoal” (GARCIA, 2014, p. 12)

às vezes é difícil entender as coisas
ver, ou ler, ouvir, ou captar,

são familiares pra mim esses livros de marília e ana
convivo com eles faz alguns anos
já quase os conheço de cor
a conversa que tento tecer aqui está acontecendo há um bom tempo
no entanto
algo segue difícil de dizer
a intimidade segue sendo uma infinita distância (MARQUES, 2015, p. 82)


[1] Disponíveis em: http://lepaysnestpaslacarte.blogspot.com/search/label/um%20teste%20de%20resistores. Acesso em 10 de março de 2022.

TEXTOS CITADOS:

CHARBEL, Felipe. “‘Os detetives selvagens’: diário de releitura”. In: Toda a orfandade do mundo. Organização: Antonio Marcos Pereira, Gustavo Silveira Ribeiro. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2016.

GARCIA, Marília. Parque das ruínas. SP: Luna Parque, 2018.

____. Um teste de resistores. RJ: 7Letras, 2014.

MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. BH: Scriptum, 2009.

____.  O livro das semelhanças. SP: Companhia das Letras, 2015.

____. JORGE, Eduardo. Como se fosse a casa (uma correspondência). Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017.

____. Risque esta palavra. SP: Companhia das Letras, 2021.

MILWARD, Julia.  Intervalos: ou como instalar ateliês em aeroportos. Juiz de Fora: Edições Macondo, 2019.

NOGUEIRA, Viviane. Uma casa se amarra pelo teto. Juiz de Fora: Edições Macondo, 2019.

PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Trad. Ivo Barroso. SP: Gustavo Gili, 2016.

REIS, Julya. Modos de usar: uma vivência [e teste] da poesia de Marília Garcia. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2017.

Créditos:

Fotografia de abertura: Felipe Vernizzi

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.