revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

Corpo: animal em extinção

Lucila Losito Mantovani

ERA UMA VEZ, O CORPO

Quando olhamos para a história da humanidade, podemos enxergar claramente a distinção entre sedentários e nômades em sua relação com o meio, e vale dizer que o sedentarismo está longe de ser uma evolução ao nomadismo. O que proponho aqui é um olhar histórico para estas duas physis — formas distintas de interagir com o meio — que antecedem a criação dos conceitos de espécie, nação, raça e gênero.

Ao se proclamar sujeito, diante do horror frente ao desconhecido em sua própria natureza, o homem sedentário iniciou um processo de separar-se do próprio corpo, que passa a ser um mero objeto. Este divórcio funda o pensamento ocidental cartesiano. Arquitetando o mundo a partir desta auto-cisão, que não deixa de ser a sua própria domesticação, ele dá origem ao homo faber, que sujeita a natureza à sua ordem e controle. Passa a construir um universo artificial, violentando em primeiro lugar a si mesmo, e odiando-se por isso em esferas profundas de sua psique. Antes de colocar a vida de outros viventes a seu serviço, o homo faber coloca o próprio corpo em função de seu sujeito. O corpo para ele não é mais a causa da consciência, virou o objeto dela.

O homo faber é o primeiro vivente que sente a necessidade de inventar uma vestimenta para cobrir o próprio sexo, rompendo com sua nudez (como bem aponta Derrida em seu ensaio O animal que logo sou). Talvez possamos dizer, como pontua Márcio Seligmann-Silva (2011) evocando Freud, que esta dinâmica de aculturação, este mal-estar na cultura, não deixa de ser um largo processo de afastamento, recalcamento e despedida de nosso lado animal, resultando neste homem do século XX, que não se sente em casa nem no próprio corpo.

O homem nômade, por outro lado, é um experimentador aventureiro, que modifica o meio em igual proporção em que se deixa afetar por ele ou usufruir dele, muito mais ciente de sua condição de coexistência e vulnerabilidade. Ele dá origem ao “homo ludens”, que é aquele que brinca, joga, que constrói um sistema efêmero de relações entre natureza e vida, em estado de constante experimentação e coexistência com o meio, sem deixar de estabelecer avanços culturais, sociais e espirituais importantes.

Civilizações africanas e ameríndias estabeleceram-se por milênios a partir desta lógica, até serem sobrepostas, esvaziadas ou trazidas à extinção pelo avassalador processo “civilizatório”. A história de nossa colonização reencena a narrativa do Gênesis, onde Caim (homo faber) mata seu irmão Abel (homo ludens) numa disputa por terra. Vale dizer, entretanto, que ainda hoje diversas etnias e suas filosofias de bem-viver resistem e começam a se tornar uma possível esperança na construção de uma sociedade pós-colonial.

Como aponta Donna Haraway, somos animais que tendem a considerar outros viventes como meios para atingir nossos fins: alimentação, vestuário, saúde e conforto psicológico. Tratamos deuses, aparelhos e animais como se fossem pessoas, para que se tornem dignos de nosso amor fraco, nosso cuidado frouxo e aleatório. Rompemos com o cordão umbilical que nos unia à terra, e acabamos presos ao umbigo do capitalismo. Tudo aquilo que foge ao controle desta sociedade, que prioriza a razão e o capital, é expurgado para a margem: creches, asilos, zoológicos, presídios, manicômios — as bestialidades do corpo, e com elas, outras tantas possibilidades. Mas, que inteligência é esta que legitima práticas de violência, assujeita outros viventes, levando o planeta para cada vez mais perto de sua extinção?

O RESGATE DA ANIMALIDADE 

Sabemos que a palavra “animal” é uma denominação que os homens instituíram, um nome que eles se deram o direito e a autoridade de dar a outro vivente, com a permissão de Deus, segundo o livro do Gênesis, mas isso não significa que estes outros seres não tenham linguagem, comunicação ou capacidade de pensar. Resgatar a animalidade é, antes de tudo, parar de se afastar do corpo para ditar regras e certezas sobre outrem. Se pensar parece ter se resumido ao poder de nomear, classificar, hierarquizar, ter, apossar-se e violentar coisas e seres, voltar a sentir talvez represente a possibilidade da co-criação de mundos mais alteros.

Para além de ser uma pele que reveste o fantasma do primitivo reprimido e a precariedade do corpo a partir de sua fisiologia, a animalidade é sobretudo a potência de se relacionar com o outro através dos sentidos e pelo coração, como sugere Derrida. Ela também representa a possibilidade de ampliar nossas experiências coletivas de mundo, resgatando uma relação transcendental com a natureza, tão bem descrita por David Kopenawa em A queda do céu.

Como anuncia Derrida, o uso (no singular) de “o animal”, reduz todos os viventes não humanos a um conceito abstrato e genérico, um “lugar-comum” desprezível. Coloca no mesmo saco todo vivente que o homem não reconhece como semelhante, como irmão. E isso, apesar dos espaços infinitos que separam um lagarto de um cão, um protozoário de um golfinho, um camelo de uma águia, usando exemplos escolhidos pelo próprio autor. É importante reconhecer cada animal como alguém, e não como coisa.

A transcendência da nossa equivocada noção de Humanidade através do resgate da nossa animalidade, está inevitavelmente ligada à uma reaproximação com a subjetividade dos animais, com facetas e habilidades obscurecidas de nossos próprios corpos.

Introduzindo a noção de zooliteratura como “espaço de reflexão crítica sobre a questão animal num mundo em que o homem se define a partir da dominação que exerce sobre os viventes não humanos”, Maria Esther Maciel (2011) também projeta o animal como figura de nosso próprio “possível ilimitado”. Guimarães Rosa, como recorda Eneida Maria de Souza (2011, p. 246), afirma que “amar os animais é aprendizado de humanidade”. Donna Haraway (2011), por sua vez, diz amar o fato de ser um macaco, entre macacos. Gosta da ideia de possuir apenas 10% de genomas considerados humanos entre todas as células de seu corpo. Clarice Lispector, em Água Viva, conta que não ter nascido bicho é sua secreta nostalgia. Em seu ensaio O animal que logo sou, Derrida nos explica que “os humanos precisam se aceitar como animais para se tornarem humanos” (MACIEL, 2011, p. 98).

Se por um lado percebemos uma relação hierarquizada entre humanos e animais, refletida na literatura, historicamente produzida prioritariamente por homens, é fácil notar também que a literatura emergente, aquela produzida por mulheres, indígenas, LGBTQIA+ e afrodescendentes, transpira uma relação cada vez mais aproximada com o corpo e com a subjetividade dos animais.

Podemos observar os gestos citados acima na monstruosa barata do romance A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, que faz com que a narradora enfrente a própria outridade. Ou ainda, no romance O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, onde uma menina indígena reencarna numa onça-entidade para se vingar do cientista que a separou de sua família na época da invasão colonial; em Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, onde entramos em contato com uma personagem feminina que se alia aos animais, para vingar-se de homens de sua comunidade; em Memórias de porco-espinho, de Alain Mabanckou, romance narrado por um porco-espinho assassino que medita e revisita lugares fundadores da literatura e da cultura africana; ou ainda, em Memórias de um urso-polar, de Yoko Tawada, onde três gerações de ursos-polares, embora dotados de patas e garras, revelam como nós, humanos, nos comunicamos com nossos próprios sentimentos em meio aos eventos da história do século XX. 

PENSAR COM O CORPO

Muitas pessoas talvez não se deem conta do estado de anestesia a que seus corpos são submetidos ao viverem em conformidade com o sistema vigente, que foi construído a partir de violências, é mantido por desigualdades, e regido, sobretudo, pela cisão original entre cultura e natureza, o racionalismo que nos cinde entre sujeito e objeto, que acabamos de descrever.

É comum nos sentirmos esquisitos, desencarnados, presos para fora do corpo, esvaziados. Mas, ninguém vive sem corpo. Falamos de um fato banal. Mesmo o ser mais espiritual precisa de um corpo para se manifestar. Mesmo o ser mais racional, precisa da língua para se comunicar e das mãos para escrever. Mas, ao mesmo tempo que temos um corpo, nós somos esse corpo. Nosso corpo é inseparável de nós, e não se submeterá jamais inteiramente à nossa observação. Será, portanto, que o conhecimento racional dá conta de apreender a nossa humanidade?

Não quero mais pensar, a não ser com o corpo, proclama Kuniichi Uno em Corpo-gênese ou tempo-catástrofe, onde me apoio para delinear um corpo que, mais do que catástrofe, é acontecimento. Não quero mais descrever meu corpo ou a vida, de fora, enquanto observadora. Não quero mais falar de meu corpo ou de outros corpos, como simples objetos. Aquele que pensa, não pensou enquanto corpo, incluindo o inconsciente. O desafio da literatura emergente é dar voz a um corpo expandido, a um sujeito translúcido e poroso, capaz de habitar intersecções, mistérios, um corpo que é simultaneamente: sujeito e objeto, eu e outro, divino e animal, sublime e abjeto.

Quando proponho que a razão dê espaço à percepção, ou que o centro da minha presença seja deslocado da cabeça para qualquer outra parte do corpo, permito que a produção de conhecimento aconteça de outra forma, habilito que a criação parta de outros espaços em mim.

Este vem sendo o gesto escolhido por alguns autores emergentes, como é o caso das negociações de um corpo feminino com a morte, a natureza e a loucura para retornar à vida, em Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto; na história de uma menina com deficiência, que enxerga tudo borrado, inclusive o próprio corpo, geografia irregular que com quem ela tenta se reconciliar, em O corpo em que nasci, de Guadalupe Nettel; no romance O corpo interminável, da Cláudia Lage, onde entramos em contato com feridas de corpos femininos, entre o amor, a vida e os terrores da ditadura; ou ainda, no romance Com o corpo inteiro, auto-ficção de minha autoria, onde uma jiboia passa de metáfora para a abjeção ao corpo, para pivô de experiências xamânicas que ajudam a narradora-personagem a juntar seus pedaços e resgatar sua pulsão vital. Não podemos negar que a Outrização causa a necessidade de uma reconstrução de esquemas-corporais e que, ao nos narrar, criamos novas epistemologias.

HUMANIDADE EM DECOMPOSIÇÃO

Para que possamos construir uma nova noção de humanidade, precisamos desconstruir os conceitos que limitam os esquemas corporais dos negros, dos indígenas, das mulheres, dos LGBTQIA+, dos animais, dos vegetais e também do homem branco, levando ao adoecimento das relações e produzindo uma traumatização sequencial e constante da minoria.

Segundo Donna Haraway, esta luta pela criação de novos mundos possíveis é a busca por um ser-em-comum e não por uma identidade comum: “estarmos dobrados juntos em multiespécies, ‘tornando-se-com’ – identificados e diferenciados entre nós nesse sentido, em amor e ódio nesse sentido –, parece-me requerer uma resposta terrivelmente importante, afetiva, ética, política e científica. Chamo isso de feminismo.” (2011, p. 408).

Trata-se de pensarmos numa comunidade de viventes, com formas diferenciadas – múltiplas, heterogêneas – de vida. A lógica do múltiplo escapa tanto da semelhança quanto da diferença, para se situar numa região comum e compartilhada entre seres. Trata-se da convivência entre distintos modos de vida, sem delinear hierarquias estanques. Uma comunidade composta por cruzamentos e encruzilhadas, apontada ao enfraquecimento do sujeito e de seu estado de abandono.

Pensar comunidades compartilhadas é abrir espaço para a diferença, abraçar as especificidades carregadas de história que estão em toda parte, desfazer as hierarquias prezando a convivência, habitar silêncios, permitir outras formas de comunicação, percepção e criação. É falar sobre um processo contínuo de “becoming with”, de “tornar-me-com”, de ser em conjunto. Por estarmos implicados um no outro, emaranhados, todas as ações, independente das identificações, estão de alguma forma reverberando no todo. Toda a prática de viver e morrer sem inocência, de participar da vida e da morte de outros seres com responsabilidade, sejam eles humanos ou não, animados ou não, orgânicos ou não, técnicos ou não, consiste nesta decomposição do conceito de humanidade atual, no plantio de sementes de novos mundos-em-relação, emaranhados em respeito e consideração recíproca.

Os aspectos acima são ora encontrados, ora reivindicados, em romances como Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, onde heranças escravocratas acontecem num território onde a onça continua à espreita e se relaciona, sem hierarquia, com os moradores da fazenda; nos entrelaçamentos entre animal e biopolítica em Assim na terra, como embaixo da terra, romance da Ana Paula Maia; em A vegetariana, de Han Kang, romance que aproxima vegetarianismo, loucura e sexualidade, escancarando tabus e recalques humanos; no romance Terrapreta, de Rita Carelli, onde uma adolescente ejetada de seu ninho flutua entre as fronteiras da terra e do corpo, da metrópole e das aldeias que a recebe, escancarando o sentido de estar viva.

Como há muito intuiu Cecília Meirelles, e Evandro Nascimento (2011) nos relembra, superviver é reinventar a vida, e os romances citados nesse texto, ao se aproximarem de uma experiência pulsante de escrita, falam sobretudo da passagem de um estado menos reativo, fechado e assertivo, para outro mais criativo, aberto e tentante de estar no mundo, de inscrever o corpo, e de viver e escrever a vida. Afinal, a melhor resposta que podemos dar às forças destrutivas do mundo segue sendo a criação, seja ela em carne e osso, ou papel e caneta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.

Créditos:

Imagem de abertura: Felipe Vernizzi

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.