revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

A ocupação do tempo ou deslocamentos na escrita de Marguerite Duras

Isabela Bosi

I.

Uma mulher está à beira de uma estrada. Ela espera. Ao redor, não há casas nem pessoas. Escutamos o mar distante, alto o suficiente, enquanto ela acena a um caminhão, pedindo carona. Ele para. Ela sobe, carregando uma mala. Seguimos pela estrada em silêncio. Não sabemos como ela se chama, apenas que é pequena, magra, grisalha, banal. A única coisa em comum entre o motorista e a mulher é a paisagem que se estende diante dos dois e o inverno, do lado de fora. Pela janela, eles olham as colinas de Beaucé ou o deserto de terras emigrantes – não sabemos onde estamos. A mulher, então, aponta para o mar e diz: olha, o fim do mundo.

Assim seria o início de Le camion, filme de Marguerite Duras, de 1977. Digo seria porque o roteiro narra o que não será filmado, mas lido. Duras abandonou a ideia de filmar a história e decidiu convidar o ator Gérard Depardieu para, juntos, lerem o roteiro, na sua casa em Neauphle-le-Château. O filme se transforma, então, nessa leitura do que seria o filme, que começaria com a personagem à beira de uma estrada, que pode ser qualquer estrada, perto de uma praia, que pode ser qualquer praia. Duras não nos entrega imagens prontas, mas nos coloca diante dessa mulher através da nossa imaginação. Para enxergá-la melhor, é preferível fechar os olhos, como a própria Duras diz. Ver um filme sem imagens.

A história segue. Dentro do caminhão, ao lado de um homem desconhecido, a mulher fala sobre muitas coisas, como o fim do mundo, a morte, a solidão da Terra no sistema solar, as novas descobertas sobre a origem do homem. Não se sabe de onde ela vem, para onde vai, nem mesmo onde está, onde estamos. O caminhão segue enquanto ela fala de outras cidades, dos rios, das viagens que fez. O homem não parece escutar, não pergunta nada. Ela responde, mesmo assim, dizendo que tudo está em tudo – tout est dans tout –, por todos os lados, em todos os tempos. O território por onde o caminhão se desloca não se situa num ponto específico de um mapa, mas em todo e qualquer lugar. Trata-se de uma ocupação do tempo, como a personagem diz, e não do espaço.  

Durante uma hora e vinte minutos, flutuamos da sala mal iluminada de Duras, onde ela e Depardieu leem, para a cabine do caminhão em movimento; para perto do mar, do ruído das ondas; para o pé das montanhas; e por aí vai. Estamos em todos esses lugares, simultaneamente – tout est dans tout –, ocupando um tempo que se desdobra numa escrita nômade, sem lugar, sempre em deslocamento: eis o jogo que Duras provoca e do qual participamos, mesmo sem perceber. 

Para o filósofo Gilles Deleuze, os nômades teriam inventado uma máquina de guerra contra o aparelho do Estado. Sem passado ou futuro, somente devenirs, ou seja, um tornar-se infinito. O movimento do nômade não pertence à linha do tempo. Como se a máquina contra o Estado se constituísse no gesto radical de abandonar territórios conhecidos para iniciar algo novo, num devenir incessante que escapa ao tempo cronológico, mensurável, linear.

Duras incorpora esse nomadismo como projeto de ocupação de outro tempo, de criação de deslocamentos na e pela palavra – essa máquina de guerra que, na destruição de toda fronteira, se contrapõe aos aparelhos sedentários do Estado. A mulher de Le camion, sem identidade ou partido, carregando apenas uma pequena mala, se lança de carona em carona, sem origem nem destino.

De modo similar, a escrita – e a leitura – de Duras nos revela o absurdo de todo mapa. Se tudo está em tudo, habitamos, antes, múltiplos tempos em vez de um único espaço. Ao deslocar-se dentro desse caminhão, a mulher não sai de um ponto geográfico a outro, apenas. Ela observa, ao redor, a presença de inúmeros lugares, a partir da memória e dos tempos pelos quais percorre.

II.

Quando criança, Duras vivia na colônia francesa da Indochina, onde nasceu. Filha de pais franceses, que seguiram para a terra distante, acreditando no discurso colonialista, Duras cresceu com sua mãe contando, repetitivamente, as histórias do país de origem, do Pas-de-Calais, da fazenda Croisette, tudo isso que Duras nunca viu e jamais veria. No entanto, até o fim da vida, ela se lembrará com mais detalhes dessas histórias do que de qualquer outra. É essa sua primeira viagem, a primeira literatura possível, através das memórias maternas, e de uma escuta atenta.

A mãe, dominada pelo racismo, rejeita a cultura local e se esforça para tornar a filha francesa e, sobretudo, para relembrar a si mesma de que não deixou de ser francesa, mesmo numa terra tão outra. Esse é também um esforço de imaginação: trazer a França para dentro de uma casa em Saigon. Tudo está em tudo, por todos os lados, em todos os tempos. É preciso cultivar uma espécie de nomadismo da memória, na palavra.

Anos depois, já adulta, Duras reproduz, de certo modo, o gesto da mãe, mas, ao contrário do apego a uma França, e a uma memória, Duras traz na literatura múltiplas geografias. Reforça, assim, a ideia de que estamos sempre em toda parte – être partout –, através de uma ocupação do tempo. Não só em Le camion, mas em grande parte de sua obra, Duras desfaz a ideia de uma cartografia fixa. Não à toa, Le camion termina quando a mulher desce do caminhão e o movimento se interrompe, a travessia acaba. A escrita existe apenas no deslocamento, não só do corpo da personagem, mas do pensamento, da imaginação, da memória.

A mulher de Le camion – que é também Duras, em muitos momentos, como ela mesma diz – não traça caminhos no mapa nem indica ao motorista uma direção. Seu trajeto se desenrola naquilo que ninguém vê – no tempo. É essa a máquina de guerra de Duras, não só contra o aparelho do Estado, mas contra toda forma de controle do corpo, da imagem, da palavra. Sua escrita já não se acomoda num sedentarismo da linguagem, mas se assume nômade, como a mulher de Le camion. A força desse deslocamento nunca está na busca por um destino, mas no próprio deslocar-se, esse contínuo devenir.

Créditos:

Imagem de abertura: divulgação/internet

Imagem 2: cena do filme Le camion

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.