O cobertor é azul aqui em Portugal. Recém-saída da chaleira às seis e dezessete da manhã, a xícara de café com leite me esquenta enquanto meu marido dorme. Ele veste máscara com tampão de ouvido e ainda não sabe quem é. Ainda não sabe que
– choveu 3.3mm à noite
– o dia começou
– nosso gato desapareceu.
O gato saiu de madrugada e não voltou mais, a cestinha vazia no quintal. Antes de fugir passou a noite embaixo da cama. Chorava o choro dos gatos, o choro incompreensível dos gatos, e chorava tanto que meu marido abriu a porta de madrugada
– Não
,pedi
vamos deixar ele aqui; o bichinho doente precisa ficar do lado de dentro de casa.
Era tarde demais. O gato arranhou as portas, a cômoda e o sono do meu marido, que é um homem sensível demais
para os eventos inesperados.
Desde então desapareceu. Espero que volte logo porque preciso lhe dar os remédios. Anti-inflamatório, antibiótico, distensor de bexiga, Ômega 3. Grito seu nome; nada. O gato ignora os horários da medicina e os meus. Talvez ele esteja longe daqui
agora
Talvez esteja perto daqui
Agora
Talvez tenha partido para sempre.
A verdade é que não sei. Olho para o telefone enquanto a xícara esfria e descubro que a Rússia invadiu a Ucrânia. Os mercados caíram e os vôos civis foram cancelados. Ninguém voará hoje sobre a Ucrânia. Depois leio um artigo sobre a incidência 14% menor de câncer em vegetarianos
e me acalmo.
Fui a uma igreja ucraniana em Curitiba há uns meses atrás. Chegamos depois do horário da visita e a porta estava fechada. Na frente havia uma lojinha de souvenirs com pessankas, os ovos pintados com motivos coloridos sobre a casca frágil.
Mesmo se quiser, hoje meu gato não poderá voar pelo céu da Eurásia.
Hoje, longe daqui, as pessoas da igreja ucraniana de Curitiba se encontraram no salão principal para fazer uma prece, porta aberta, lojinha fechada.
Hoje não estão vendendo pessankas.
A casca do ovo rachou. Aqui em Portugal acenderei uma vela assim que terminar o café. Vou pedir para tudo dar certo, mesmo sem saber o que certo é.
Pedirei pelo retorno do gato e pela paz nos aviões que tiverem coragem de sobrevoar o céu da Eurásia
Mas certas coisas
e certos bichos
a gente nunca sabe se vão voltar.
Créditos
Imagem de abertura: Felipe Vernizzi
Imagem 2: ilustração da própria autora Surina Mariana