revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

Uma escrita entre fronteiras: entrevista com Gabriela Aguerre

Gabriela Aguerre

por Ana Marta Cattani

Gabriela Aguerre nasceu em Montevidéu em 1974, mas mora no Brasil desde pequena. Caçula de uma família que emigrou durante a ditadura, dividiu-se entre os dois países, um pouco cá, um pouco lá. Trabalhou com jornalismo de viagens por mais de 10 anos, tendo textos seus reconhecidos com prêmios importantes. Trabalhou por quase 20 anos na Editora Abril, e por alguns anos dirigiu a revista Viagem e Turismo. Cursou a pós-graduação em Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz e, ao longo do curso, escreveu seu primeiro romance, “O Quarto Branco”, posteriormente publicado pela Editora Todavia, em 2019.

Foi no Vera Cruz, em 2015, muito antes do vírus e da pandemia, que conheci Gabi. Brasileira nascida no Uruguai, uruguaia nascida no Brasil. Naquela época “O Quarto Branco” era apenas um atabalhoado de rascunhos, que líamos e relíamos nas oficinas de escritas do Vera Cruz. Não imaginávamos que OQB – é assim que Gabi carinhosamente apelidou o livro – seria publicado, e que chegaria a finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura!

Conheci Sara de Melo em 2019, numa residência literária, pouco tempo antes da pandemia virar nossas vidas de cabeça pra baixo. Ela já havia morado em várias cidades diferentes e carregava consigo a casa, feita de folhas e versos. Fizemos trilhas na Mata Atlântica e entre um mergulho e outro no mar, sonhamos poemas, que depois viraram livro, o nosso “Corpo de Terra” (Editora Quelônio).

Quando Sara me convidou para colaborar com a Pupa! – segundo ela uma revista que gira em torno de “uma escrita na fronteira entre sonho e realidade” –, nada me pareceu mais natural, portanto, do que juntar sonhos e amigas queridas, trazendo Gabi para falar de sua escrita, de seus projetos na fronteira entre sonhos e deslocamentos.

Faço o convite para a entrevista por whatsapp e ela rapidamente me responde e aceita, com um doce comentário “falar de literatura com amiga não tem coisa melhor”.  Mando as perguntas por e-mail, mas só quando a própria Gabi me diz que seria mais divertido sentar e conversar, é que me dou conta de que não vamos realmente “falar”.

Gabi tem dessas coisas: uma franqueza deliciosa, que só nos faz querer ouvi-la mais e mais. Esta entrevista é para escutar com os olhos: palavras de Gabriela Aguerre, mi querida chicuela.

*

Ana Marta Cattani: Como é para você viver entre casas, viver entre línguas, enfim, “viver entre” isso e aquilo? E quais são os “issos” e “aquilos” que permeiam suas vivências e memórias? “Viver entre” pode ser uma maneira de estar no mundo? Como tudo isso atravessa a sua escrita?

Gabriela Aguerre: Eu fui criada entre dois países em uma época em que partidas, chegadas, despedidas e boas-vindas se misturavam para mim de uma forma muito dolorosa. Sempre faltava um pedaço, que não recebia nome, do qual não se falava. Se passasse um tempo em Montevidéu, queria ficar. Quando me habituava à rotina em São Paulo ou no Rio, era hora de visitar os avós. E sempre a sensação de ser arrancada, com imensos períodos de melancolia por não me sentir exatamente pertencente a nenhum dos lados da fronteira.

Mas sob o teto seguro de pai, mãe e irmãos, fomos criando um espaço de resistência, que talvez seja o maior legado entre minha família: mantivemos o idioma, os livros, os discos, as cartas de cá para lá. Nossa casa aqui foi ficando sempre muito uruguaia, o que me ajudou rapidamente a construir uma ponte de volta – que, já adulta, só precisei atravessar.

Hoje vivo um tempo em São Paulo, outro em Montevidéu. Faz alguns anos encontrei um certo equilíbrio entre duas casas. Durante a pandemia pude ir para lá um tempo. Saí de um confinamento bastante estrito e pude ao menos ver o mar.

Tenho às vezes a impressão de que serei “descoberta”, como uma impostora, ou de que serei para sempre estrangeira – e cada vez fico menos desconfortável com qualquer uma dessas duas impressões. Nesse sentido sua pergunta me leva direto ao livro Vivir entre lenguas, da argentina Silvia Molloy (Eterna Cadencia, 2016). Em dado momento, ela, que é trilíngue, se pergunta qual será a língua de sua senilidade. E em que língua ela morrerá? E, antes da resposta, que não vem, ela parece se aliviar pensando que, talvez por uma única vez, ali, na antessala da morte, ela não vai precisar mais escolher.

Eu gosto de pensar que desde já não preciso escolher – e tateio essa zona fronteiriça, entre um país e outro, uma língua e outra, um outro eu que poderia ter sido se tivesse ficado, um eu que jamais existiria se meus pais não tivessem emigrado, observando a riqueza que vem desse estado sempre impermanente.

Ana Marta Cattani: No seu primeiro romance, O Quarto Branco (Todavia Ed.), a protagonista é uma mulher uruguaia criada no Brasil, que se desloca para entender seu passado, retornando ao Uruguai para revisitar a história da irmã gêmea morta. Não raro há autores que viajam para escrever, seja em busca de isolamento ou de fontes de pesquisa, e o tema do “exílio” (voluntário ou forçado) é recorrente na literatura mundial. Você também já viajou para muitos lugares, trabalhou como jornalista especializada em viagens e turismo, fez disso material para cursos e oficinas. Os deslocamentos podem ser matéria-prima para a escrita? Como?

Gabriela Aguerre: Para mim a ideia de deslocamento sempre foi um motor para a escrita. Talvez porque tenha me acostumado desde muito cedo a ver o mundo por uma janela em movimento. Depois tive a sorte de trabalhar viajando, algo que para mim hoje seria impensável, conhecer e escrever sobre tantas cidades como ofício. Em cada viagem, tinha a incumbência de trazer um mundo na mala, uma mala que precisava ser desfeita publicamente, contando para os outros como era aquele lugar que eles não conheciam ou que gostariam de revisitar.

Nesse sentido sempre tentei escrever como uma forma de teletransporte. Isso que a escrita nos proporciona, de poder fazer um convite para que o outro embarque junto, se coloque no lugar de quem se desloca ou se encontre com quem escreve em um lugar outro, um encontro que acontece a cada vez que um texto é lido.

 Sem dúvida esse apreço pelo deslocamento aparece de muitas formas, ao menos para mim, no livro que escrevi, O Quarto Branco. No processo de escrita, percebi que se não saísse do lugar a protagonista também não sairia. Por isso enquanto escrevia, tentei eu mesma fazer os movimentos possíveis, tanto por São Paulo, como em Montevidéu. Quando entendi que ela também poderia se deslocar, foi uma imensa libertação.

Ana Marta Cattani: A escritora Adriana Lisboa, no poema “O que fica para trás”, nos diz que “partir sempre é outra maneira de ficar”. Como você enxerga essa aparente dicotomia entre partida e chegada? O que fica para trás? E o que nunca chega?

Esse verso sacode a gente, né? Porque permanecer e ir embora parecem estar contidos um no outro, vistos dessa “outra maneira” – e talvez essa compreensão ajude a gente a fazer movimentos importantes pela vida; de outra maneira não teríamos coragem, impulso. Entre esse partir e ficar da Adriana Lisboa, se por um lado é evidente que uma paisagem anterior se desfaz, por outro há muita coisa que se mantém, mais até do que a gente gostaria. Eu acho que a ideia de me levar para lá e para cá é a que me acompanha. Não posso partir de mim. Então me levo, e sempre vou estar do outro lado. Já sei com mais certeza, ou pelo menos acho, que coisas levo na mala.

Ana Marta Cattani: Pode nos contar um pouco mais sobre o seu próximo projeto literário envolvendo a anotação de seus próprios sonhos? O que a motivou a começar a transcrever sonhos? Os sonhos para você funcionam como disparadores criativos da escrita? Em que língua você costuma sonhar?

Gabriela Aguerre: Escrever os meus sonhos era um projeto antigo, que começou como material de análise e terminou virando um hábito de escrita, uma rotina que me mantinha por duas ou três horas todas as manhãs escrevendo a partir da lembrança ora tênue ora firme do sonho sonhado pela noite. Essa prática me ajudou a me manter presente na escrita durante a pandemia, em que todos os rascunhos em que vinha trabalhando foram perdendo relevância, como se não importassem mais.

Quando fui me aproximando dos mil sonhos, estabeleci o limite, sentindo que era hora de parar. Curioso que o sonho número 1000 foi sonhado e escrito (esse foi em português, mas sonho muito em castelhano também) no último dia do ano passado, e me custou abandonar os registros. Me vi “presa” nos sonhos, uma sensação que tinha tudo para ser prazerosa mas não foi. Passei a dormir muitas vezes por dia, em busca do fio perdido, em busca de algo que parecia mais vívido que a própria vida. Não foi um processo fácil, e em muito se assemelhou a um estado depressivo, que venho observando e cuidando.

Ana Marta Cattani: Em que medida os sonhos, borrando as fronteiras entre realidade, imaginação e memória, podem ser também uma espécie de viagem, um deslocamento?

Gabriela Aguerre: Pela minha experiência, posso dizer que essas medidas são muitas. Já me vi voltando a lugares que adoro, sobrevoando cidades, visitando pessoas que só vi uma vez, continuando conversas. Já me vi levando pessoas que adoro a lugares que conheço, passeando com elas, matando saudades. Também percorri lugares novos, vai saber quais eram, assim como muitas vezes eu sabia exatamente o que havia para fora de um elevador, por exemplo, mesmo que no sonho eu nunca saísse dele. Mas em sua maioria os sonhos me levam a lugares da infância, que sempre serão os mesmos. Sonho como uma espécie de viagem de volta – e talvez seja essa a viagem mais difícil e também sedutora.

Ana Marta Cattani: Por fim, quais suas palavras favoritas em espanhol e em português?

Gabriela Aguerre: Se eu não tivesse tempo para pensar, diria mamarracho, que tem uma sonoridade muito gostosa, palavra boa de falar, e significa algo mal feito – mas dita com ternura pode até ser um adjetivo carinhoso. Em português, a primeira coisa que me ocorre é a algum diminutivo que transforme o sentido da palavra, isso que fazemos tanto. Vou de coisinha, dita para alguém de quem goste muito.

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Créditos:

imagem da capa: Renato Parada

Imagens do texto: arquivo pessoal da autora Gabriela Aguerre

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.