revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

Literatura e sonho: entrevista com Carola Saavedra

Carola Saavedra

por Sara de Melo. Transcrição do áudio: Julia Pantin.

Sara de Melo: A revista Pupa é preponderantemente feita por mulheres e por temas que nos movem. No caso dessa edição específica, há o seguinte recorte: literatura/sonho, deslocamentos, arte/natureza, nomadismo. Na literatura que você produz, há a presença de mulheres muitas vezes inquietas e prestes a partirem. Há o desconforto, o não-lugar, o aprendizado de se colocar diante dos próprios limites. Algumas vezes, um desafio se impõe: um novo país, um recomeço, uma nova língua. E, às vezes, isso é levado ao extremo das próprias forças do/da personagem. Isso está bem distante do que homens há um tempo atrás classificaram como os ditos “temas femininos”. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

Carola Saavedra: Bom, eu falo sobre isso em ‘O Mundo Desdobrável’… a gente tem uma ideia do que seria o universal tido pela sociedade: o homem branco, heterossexual, ocidental ou ocidentalizado. Isso é tomado como natural e, talvez, o interessante seja justamente desconstruir que não se trata de algo natural, de temas ou vivências universais, mas sim de estruturas de poder social, econômico, político; estruturas que naturalizam um modelo, como se ele fosse dado por Deus, por alguma instância divina.

E agora estamos passando por um momento em que estamos deixando de olhar para isso com naturalidade e começando a questionar: ‘bom, que temas são esses, que são considerados como universais na literatura?’. E como o universal é dado a partir do homem – a mulher e qualquer outra minoria em termos políticos, que tenha voz – é vista como algo menor, específico daquele grupo. Então, a gente tem essa divisão entre o que seria temas femininos e temas – não masculinos, mas universais –não ligados a questões específicas. E os temas femininos seriam ligados a questões específicas da mulher, ou de quem é vista como uma mulher.

 Então o que a gente está pensando agora na literatura é em desconstruir essas ideias. Se falava muito, em todo esse discurso pós-moderno do ‘tudo já foi dito’, aquela discussão ‘então o romance acabou, não acabou’, ‘todas as histórias já foram contadas, não há mais nada a contar’…, mas, de repente, a gente se vê diante da realidade de que, na verdade, apenas a menor parte das histórias foram contadas. Foram contadas as histórias desse homem branco, heterossexual, ocidentalizado, mas esse é um grupo pequeno. E os outros grupos? E as histórias e as vivências consideradas femininas? E as vivências de outros povos, de outras formas de pensar, de outras cosmogonias, enfim? Então, a gente começa a olhar de forma crítica e ver que não, que têm muitas histórias que ainda não foram contadas e que precisam ser contadas. Porque enquanto essas vozes, enquanto esses grupos não tiverem uma voz para contar suas próprias histórias, o que a gente vai ter é essa ideia de universal, que na realidade não corresponde à nossa vivência. E, no caso das vivências das mulheres, que não corresponde a essa vivência necessariamente, e que muitas vezes, há outras formas de perceber essas mesmas vivências consideradas masculinas. Então no fundo, se trata de descontruir essa ideia do masculino e do feminino para pensar ‘bom, o que surge aí? Que outras vozes, que outras experiências existem pra fora desse modelo tradicional?’

Sara de Melo: Um livro como experimento. Gostaria que você falasse um pouco sobre como se deu a organização do seu livro O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Há um continuum, um fio sustenta um diálogo com o leitor, de forma que o texto vai se fazendo nesse encontro. Ao mesmo tempo, o texto é composto em uma estrutura bastante fragmentada, que abriga experimentações com a linguagem, anotações de ideias, reflexões, traduções, breves ensaios e até mesmo fragmentos de sonhos. Ele não se prende a gêneros específicos, pelo contrário, parece habitar esse entre. Me interessa essa liberdade total do/a escritor/a e esse intenso processo de experimentação, na fronteira da linguagem. Gostaria de ouvir um pouco mais sobre isso.

Carola Saavedra: Bom, acho que assim como me interessava, ou me interessa, desconstruir essas ideias de gênero, de o que é uma literatura universal, das histórias que já foram contadas, ou ainda não foram contadas, acho que o movimento é o mesmo com respeito ao gênero: por que que a literatura tem que estar construída nessas caixinhas: ‘isso daqui é prosa, isso é poesia, isso daqui é romance, isso daqui um livro de contos e isso é um ensaio?’. Então o que fiz no meu livro foi, de certa forma, adotar um conceito que eu crio e sugiro no ‘O Mundo Desdobrável’, que é a ideia da permaescrita, baseada na ideia da permacultura, que é uma cultura que, ao contrário de um monopólio, em que se planta só bananas, é necessário pensar num jardim, ou no que for, em que você vai ter diversas espécies de plantas, e isso vai incluir os insetos, e uma série de outras questões que não são apenas da planta em si. Então eu pensei ‘bom, porque não fazer isso também na literatura?’ – que seria essa permaescrita. O que seria isso? seria um livro em que tudo é possível, tudo entra, em que esses gêneros não estão fixos, há uma fluidez entre esses vários gêneros.

 Acho que de certa forma, isso ajuda a gente a pensar, porque não vejo essa divisão entre ‘ah, isso é um ensaio, então estou falando de coisas que tem a ver com a realidade; ou, isso é ficção então estou falando de coisas ficcionais’. Não, na realidade você pode argumentar com a ficção, você pode argumentar ensaisticamente com ficção, com poesia. Então acho que não há essa divisão entre a forma de trabalhar com a realidade, a forma de argumentar, a forma de trabalhar. No fundo, elas são a mesma coisa, então é como se tivesse entre a ficção e a realidade, entre o sonho e a vigília, uma fita de moëbius, em que o lado de dentro é o lado de fora. E enxergo isso pra tudo, pra tudo essa desconstrução dessas categorias tão fechadas nas quais a gente se move, ou costumava se mover. 

Sara de Melo: Nem o escritor sabe de tudo que escreve. Às vezes, um leitor traz uma percepção muito interessante sobre o nosso próprio texto, que a gente nunca nem tinha imaginado ou planejado. Algo nos escapou e ao mesmo tempo, sempre esteve lá. Você fala um pouco disso em O mundo desdobrável: “como quando acordamos do sonho […] e tentamos nos dizer sim, que aquilo faz todo sentido, mesmo que ainda não saibamos qual.” (p. 112). Como você percebe e permite essa possibilidade do não entender enquanto você faz literatura?

Carola Saavedra: O que me interessa na escrita não é o controle e nem o descontrole, mas é algo entre esses dois opostos, do controle e do caos, em que há um acessar do saber, que no fundo a gente está chamando de saber do inconsciente, mas que se eu vivesse numa aldeia indígena chamaria de saber espiritual ou de um saber que faz parte do nosso dia a dia – que eu estou colocando como inconsciente porque estamos mais permeadas pela psicanálise, mas no fundo a psicanálise só deu nome pra algo que para outros povos já estava ali. Então acho que a gente não deve universalizar. Mas vamos chamar de inconsciente, que é esse âmbito em que a gente não sabe que sabe. Que é esse fenômeno de ‘de repente dar-se conta do que a gente escreveu’. E o interessante é que a literatura, o texto literário, ele é um texto furado, o que isso significa? Ele é um texto que se desdobra. Então vamos pensar num poema: você pode  interpretar aquele poema de mil formas diferentes, então isso é um texto que se desdobra. Não é um texto informativo, ‘isto é aquilo’. Não existe uma correspondência entre o que é dito e o que é pensado, há uma fluidez muito grande entre o que se quis dizer e o que realmente se disse. Entre o que se quis dizer e o que realmente se disse há um espaço interpretativo em que o inconsciente vêm à tona e que aquilo que a gente não sabia que queria dizer surge. Então é esse fenômeno que a mim me interessa na escrita, e é isso que eu quero provocar quando escrevo: não é um descontrole, mas um não saber tudo, um se permitir não saber tudo e ocupar um espaço de insegurança, de não saber. Talvez aqui seja melhor dizer não controle, em vez de descontrole, se permitir, até como leitora, ler um livro e não entender tudo. E sempre que as pessoas falam ‘ah, mas não entendi’, eu falo: ‘mas tudo bem, não entender também é bom’.

A gente tem muito medo, na nossa sociedade, quer destrinchar tudo, encontrar todas as interpretações possíveis do livro. E quando a gente chega num texto e a gente não entende tudo, e fica algo de enigmático – é isso que me interessa, como leitora e como escritora, quer dizer, qual é esse ponto, do enigmático, que faz com que esse livro se desdobre, com que esse livro não deixe de dizer algo. E isso que faz a diferença quando você lê um livro e diz ‘bom, acabou, é essa a história, entendi tudo, não precisa ler de novo’ e um livro em que algo fica, algo resta, e a cada vez que se volta, algo novo surge. É isso o que precisamente me interessa, e dou como exemplo no Mundo Desdobrável, o Paixão Segundo G.H., da Clarice Lispector, que foi um livro que eu não entendi, mas o fato de não ter entendido não impediu que aquilo fosse uma das experiências, e talvez a experiência literária mais importante da minha vida, e que continua acontecendo no decorrer da vida. Hoje, talvez já tenha lido umas cinquenta vezes e digo: ‘entendi tudo do livro?’, não, há uma instância desse livro que eu não acesso, e é isso que me interessa e continua me interessando.

Sara de Melo: No sonho, há uma exacerbação do real: ele escancara o absurdo da realidade em alegorias, recortes, bricolagens. Em imagens que “cantam a realidade”, como escreve Bachelard. Gostaria de saber mais sobre como você trabalha ou percebe o sonho como possibilidade de fazer literatura.

Carola Saavedra: Acho que o sonho não é somente uma possibilidade para a escrita, como também uma possibilidade pra própria vida. Eu tenho trabalhado com literatura e arte indígena, o pensamento indígena, e uma das características dos povos originários do nosso continente é a importância que o sonho tem nas questões práticas do dia a dia – nas decisões que se toma e também em como se vive.

Me chama muito atenção que essa vida onírica é tão, ou mais importante que a vida da vigília, enquanto uma das características da lógica racional, cartesiana, que permeia o nosso mundo ocidentalizado, é a ideia de que o sonho não serve pra nada, é só uma curiosidade; o sonho deixou de ser uma fonte de saber, porque não só para os povos originários do nosso continente, mas para a própria Europa, antes desse surgimento, dessa racionalidade, o sonho era importante – era importante na Grécia antiga, sempre foi importante. E a gente se afastou, colocou o sonho talvez no mesmo lugar dessa alteridade não racional, não considerada racional: a loucura, o sonho, saberes femininos, pensando na caça às bruxas. Houve todo um movimento no qual esses saberes foram extirpados da cultura. Quem vai retomar isso, de uma forma totalmente diferente, vai ser o Freud, com a Interpretação dos Sonhos, encontrando ali o sonho como uma linguagem do inconsciente. Esse inconsciente, que está para além do nosso eu, daquilo que a gente acha que é – porque também somos muito apegados nessa ideia de eu, ‘eu sou assim, eu sempre serei assim, eu sou, eu faço’– então, essa importância para o sonho é então também um deslocamento nessa ideia do eu, porque no sonho há um outro sujeito que sonha e que não necessariamente somos nós, no sentido do que a gente imagina que nós somos. É, portanto, um espaço muito fascinante de saber, de conhecimento, que a gente ignora, ou despreza.

Quando eu escrevi o Com Armas Sonolentas usei essa imagem da fita de moëbius, para mostrar que o acontecimento onírico, ou considerado da loucura etc., etc., era tão importante, ele era o outro lado da mesma fita, que é essa fita de moëbius em que o lado de dentro é o lado de fora. Que ele não é uma coisa dissociada da gente, mas que é parte da gente. Então, por exemplo, em várias culturas indígenas até hoje, por exemplo, as pessoas acordam de manhã e vão conversar, e vão falar do que elas sonharam durante a noite, e isso é uma fonte de saber. E me interessava muito trazer isso para literatura, tanto na forma temática como eu fiz com Armas, mas também como eu fiz com meu livro novo, que deve sair no final do ano, que o livro em que eu trabalho o acesso ao sonho como uma forma de escrita literária. Então, esse é um caminho que me interessa também para a criação literária – por que a literatura deveria ser construída a partir só dessa razão, a partir somente dessa lógica da vigília? Então, há ali um espaço também de criação artística que a gente não explorou. Então eu acho que o sonho é como esses temas relacionados a alteridade, vivências da mulher, vivências de outros povos, de outras sexualidades etc., etc., o sonho também se encaixa nesse lugar de alteridade desprezado, que esse saber é visto como menor ou completamente excluído. Então esses são os movimentos de integração que me interessam, quero integrar isso na minha forma de criar, de escrever, de olhar pro mundo.

Sara de Melo: Por fim, gostaria de saber se teria indicação de livros e/ou autores/as de qualquer gênero para quem o sonho é importante componente em sua literatura. Em que há esse entrelace entre literatura, criação e sonho. Muito obrigada!

Carola Saavedra: Sobre indicações, bom… Livros que foram muito importantes pra mim nesse quesito, indicaria A queda do Céu, do Davi Kopenawa, em que ele vai falar sobre essa importância do sonho na cultura Ianomami. Inclusive, ele tem aquela frase icônica em que ele diz que os brancos só sonham com eles mesmos. Esse é um livro que foi muito importante pra mim na época em que li.

Um outro livro que eu acho interessante, duma perspectiva já científica, é o Oráculo da Noite, do Sidarta Ribeiro. Principalmente quando ele fala dos estudos da neurociência, funcionamento do cérebro, a questão do sonho. Ele tem umas teorias interessantes, eu acho que é bacana porque ele vêm de um outro lugar, da ciência ocidental e que acaba chegando, em certos aspectos, nas mesmas conclusões que o Freud chega lá atrás, no final do século XIX, início do século XX.

Créditos

Imagem: Andrea Marques

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.