revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

A paisagem dos dias: quatro poemas do escritor-viajante Nicolas Bouvier

Juliana Ramos

Há mais ou menos dez anos, tive meu primeiro encontro com Nicolas Bouvier (1929-1998), um escritor, iconógrafo e fotógrafo suíço para quem a viagem representava o cruzamento de todas essas atividades, e talvez sua própria força motriz. Em seu livro mais conhecido, L’Usage du monde (1963) – que me foi emprestado em 2011 por um amigo muito querido –, Bouvier relata uma viagem de Genebra ao Paquistão, que ele empreendeu nos anos 1950 a bordo de um pequeno Fiat e em companhia de seu amigo Thierry Vernet, cujas ilustrações acompanham a edição original. A princípio publicado por conta própria, esse livro, que ainda não tem edição brasileira, se tornou muito celebrado na Europa e hoje é tido como uma das narrativas fundamentais da literatura de viagem contemporânea.

Uns dois anos depois desse meu primeiro encontro, outro amigo querido me presenteou com um arquivo mp3 que continha uma longa entrevista de Bouvier, em que o autor, além de contar histórias e exibir registros sonoros feitos ao longo de suas viagens, também lia seus poemas.[1] Eu, que até então só conhecia o prosador-ensaísta das viagens, fiquei surpresa ao descobrir a faceta poeta de Bouvier, autor de uma única e pequena antologia de poemas: Le dehors et le dedans (1982). Essa antologia, como o próprio título sugere, é construída basicamente a partir da oposição entre o lado de fora – o dehors, espaço das viagens, do exercício da alteridade, da relação intensa com o mundo – e o lado de dentro – o dedans, espaço da rememoração e da reavaliação, muito marcado pela angústia da imobilidade e da constatação do tempo que passa. Nesses poemas, portanto, muitos tempos coexistem. Há o tempo do vivido, totalmente aberto ao atravessamento, e há o tempo da (re)elaboração do vivido; não por acaso, muitos são os textos em cuja assinatura há duas datas, e mesmo dois lugares.

Quando leio os poemas de Bouvier, frequentemente me lembro de um trecho de L’Usage do monde,aqui em tradução minha, em que o escritor-viajante evoca sua passagem pela Turquia e algumas noites dormidas ao ar livre:

A leste de Erzurum, a pista é bem solitária. Grandes distâncias separam os vilarejos. Por uma razão ou outra, pode acontecer de pararmos o carro e passarmos o fim de noite do lado de fora. Aquecidos em um grosso casaco de feltro, um gorro de lã esticado sobre as orelhas, ouvimos a água ferver no fogareiro protegido por uma roda. Encostados numa colina, vemos as estrelas, os movimentos vagos da terra que vai rumo ao Cáucaso, os olhos fosforescentes das raposas. O tempo passa em meio a chás ferventes, conversas raras, cigarros, e depois a aurora se ergue, se estende, a codorniz e a perdiz se intrometem… e nos apressamos a gravar esse instante soberano como um corpo morto no fundo da memória, onde iremos buscá-lo algum dia. Pesando menos de um quilo, a gente se espreguiça, dá uns passos, e a palavra “felicidade” parece muito insuficiente e específica pra descrever o que nos acontece. No fim das contas, o que constitui o esqueleto da existência não é nem a família, nem a carreira, nem o que os outros dirão ou pensarão de nós, mas alguns instantes dessa natureza, motivados por uma levitação ainda mais serena que a do amor, e que a vida nos oferece com parcimônia, à medida do nosso frágil coração.

Os poemas de Bouvier me parecem ser justamente a tentativa de “descrever o que nos acontece” quando somos atravessadas e atravessados pelo mundo, pelo outro, pelo desconhecido – um atravessamento que é intenso, mas se dá lentamente, de modo que os sentidos sejam capazes de apreender os “movimentos vagos da terra”. Esses poemas, assim, me parecem resultar do trabalho de alguém que se esforça para colar “instantes soberanos” no fundo da memória, e/ou que recorre a eles depois de anos ou mesmo décadas. São poemas que ora encenam o deslocamento, presentificando o dehors, ora refletem sobre uma experiência já pregressa, enunciada por uma voz que agora ocupa o dedans. Pode acontecer, ainda, de essas duas posturas coexistirem num mesmo poema.

Nesta pequena seleta, traduzo quatro [JRG1] poemas[2] nos quais identifico alguns dos aspectos mencionados nesta breve apresentação. Espero que estas traduções sejam capazes de evocar em você que as lê o sabor deste tempo dilatado e destes lugares onde jamais pisei, mas que sinto experienciar vivamente através dos versos de Bouvier.


[1] Trata-se do programa radiofônico Le vent des routes, concebido e exibido pela Radio Suisse Romande após a morte de Bouvier. Mais informações em: https://www.editionszoe.ch/livre/entretiens-avec-et-autour-de-nicolas-bouvier-2cd-le-vent-des-routes (em francês). É possível escutar esse programa integralmente no YouTube (ao menos até a data de publicação deste texto): https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_npBIXMmhUp1rrYZQ69bUe46QPZROlXXes.

[2] Os textos de partida foram extraídos de uma edição de bolso francesa: BOUVIER, Nicolas. Le dehors et le dedans. 4. ed. Paris: Points, 2007.


 

Le point de non-retour

C'était hier 
plage noire de la Caspienne 
sur des racines blanchies rejetées par la mer 
sur de menus éclats de bambou 
nous faisons cuire un tout petit poisson 
sa chair rose 
prenait une couleur de fumée 

Douce pluie d'automne 
coeur au chaud sous la laine 
au Nord 
un fabuleux champignon d'orage 
montait sur la Crimée 
et s'étendait jusqu'à la Chine 

Ce midi-là 
la vie était si égarante et bonne 
que tu lui as dit ou plutôt murmuré 
"vas-t'en me perdre où tu voudras" 
Les vagues ont répondu "tu n'en reviendras pas"

Trébizonde, 1953
O ponto sem volta

Foi ontem
praia negra do Cáspio
em raízes pálidas rejeitadas pelo mar
em diminutas lascas de bambu
assávamos um peixe bem pequeno
sua carne rosa
ganhava uma cor de fumaça

Chuva suave de outono
coração aquecido pela lã
ao Norte
um fabuloso cogumelo de temporal
surgia sobre a Crimeia
e se estendia até a China

Naquele dia
a vida era tão errante e boa
que você lhe disse ou melhor murmurou
“vá e me perca onde bem quiser”
As ondas responderam “você não volta mais”

Trebizonda, 1953
Hira-Mandi

Dernière échoppe ouverte
dans la nuit de la ville
guirlandes de piments
samovar et phalènes
Halo blanc de l’acétylène
la barbe du patron est teinte d’un rouge espiègle

Trois hommes vêtues de cuir
lapent le thé vert versés dans leur soucoupe
hautes pommettes
brillant dans leurs faces cuivrées
sous la frange de feutres informes
pèlerins du Tibet chinois
en route vers l’Inde gangétique
pour accrocher leur moulin à prières
aux branches du figuier du Bouddha
puis s’en retourneront chez eux
à petit souffle à petits pas
par ces confins insurveillables
qui passent au-dessus des nuages

J’ai moi aussi rendez-vous avec un arbre
il n’est en tout cas plus question de dormir
quand la lune navigue comme une voile gonflée
si brillante et véloce
que l’âme elle-même en a une ombre

Lahore, 1954-1982
Hira-Mandi

Último quiosque aberto
na noite desta cidade
guirlandas de pimentas
samovar e falenas
Aura branca acetilena
a barba do dono tingida de um ruivo travesso

Três homens em vestes de couro
sorvem o chá verde entornado em seus pires
suas maçãs salientes
brilham nas faces trigueiras
sob a aba de chapéus amarfanhados
peregrinos do Tibete chinês
a caminho da Índia gangética
pra pendurar suas rodas de orações
nos galhos da figueira do Buda
depois voltarão pra casa
pouco a pouco passo a passo
por esses confins insondáveis
que seguem acima das nuvens

Eu também tenho um encontro com uma árvore
em todo caso não dá mais pra dormir
quando a lua navega como uma vela inflada
tão brilhante e veloz
que a própria alma ganha uma sombra

Laore, 1954-1982
Ulysse
à Claude

Au sud du bastingage
il n'y plus rien jusqu'à la Terre Antarctique
Léviathans et sirènes labourent ces prés marins
ce portulan gaufré de vagues
où d'immenses pans de ciel
s'abattent en averses fourbues
sans que Dieu lui-même
en soit informé

Chaque soir tu regardes la timbale du soleil
plonger en hurlant dans la mer pommelée
clins d'oeil des forts matous lovés dans les cordages
Les espadons bleus filent devant l'étrave
bande de bijoutiers en fuite

Voilà des mois que tu n'as pas reçu de lettres
tu es le dernier des parias à bord de ce navire
le coeur rendu, un torchon d'étoupe à la main
tout noir de souvenirs déjà
tu t'abolis dans le tremblement des hélices
tu écoutes le chant ancien du sang dans tes oreilles

Caillots ensoleillés de la mémoire
et dénombrement des merveilles
quand tu savais vivre de peu
ta vie t'accompagnait comme un essaim d'abeilles
et tu payais sans marchander
le prix exorbitant de la beauté

Praz-de-Fort, 1978
Ulisses
Para Claude

Ao sul da amurada
não há mais nada até as Terras Antárticas
Leviatãs e sereias lavram os prados marinhos
o portulano gofrado pelas ondas
onde imensas porções do céu
desabam em exaustas tormentas
sem que o próprio Deus
seja informado

Todos os dias você vê o tambor do sol
bramir ao mergulhar no mar encarneirado
piscadelas dos garanhões enrolados no cordame
Peixes-espadas azuis zarpando frente à proa
bando de malandros em fuga

Faz meses que você não recebe cartas
você é o último dos párias a bordo do navio
o coração entregue, um trapo de estopa na mão
já todo escurecido de lembranças
você se anula no tremor das hélices
e escuta a antiga canção do sangue em seus 						[ouvidos

Coágulos ensolarados da memória
e inventário das maravilhas
quando você sabia viver com pouco
a sua vida o seguia como um enxame de abelhas
e você pagava sem barganhar
o preço exorbitante da beleza

Praz-de-Fort, 1978
Le Cap Kyoga

Au bout du cap, au bout de tout
il y a ce temple shinto encadré par la pluie
lourdes solives de châtaignier
dont les veines épuisées
absorbent encore une fois l'averse
travail de charpente comme on n'en fait plus ?
si vous voulez !
beau, pour ceux qui l'ont fait peut-être
le temps de s'essuyer le front
mais pour moi ? brouillon, phraseur, touriste
et si affamé tout de même.
 
Vieillard à moitié nu
assis sur la dernière marche
qui m'adresse un regard vert
à travers ta tignasse d'étoupe
spectacle intéressant sans doute
baisse les paupières vieil homme !
toi et tes réponses 
vous venez trop tard ou trop tôt
la saison des récoltes est passée
l'espace hivernal et sa peur m'occupent entièrement
c'est à la neige et à l'absence
que je mendie à présent ma chaleur.
 
orties et poussière
cabanes usées par le vent et la mer
jusqu'où – je vous le demande –
faut-il aller traîner encore
ce moi qui voudrait tant grandir.
 
Tango-Hanto
septembre 1964
O Cabo Kyoga

No fim do cabo, no fim de tudo
há esse templo xintoísta enquadrado pela 				[chuva
densas vigas de castanheira
cujos veios exaustos
mais uma vez absorvem o temporal
obra de madeiramento como não se faz 				[mais?
pode até ser!
bela, talvez, para aqueles que a fizeram
ao limparem o suor da testa
mas pra mim? confuso, fraseador, turista
e tão faminto apesar de tudo.

Ancião seminu
sentado no último degrau
que me lança um olhar verde
através da cabeleira de estopa
espetáculo interessante sem dúvidas
baixe os olhos, velho homem!
você e suas respostas 
estão vindo cedo ou tarde demais
a estação das colheitas acabou
o espaço invernal e o medo me ocupam 			[inteiramente
é à neve e à ausência
que agora mendigo o meu calor.

urtigas e poeiras
cabanas gastas pelo vento e o mar
até onde – eu lhes pergunto –
ainda será preciso arrastar 
este eu que queria tanto crescer.

Tango-Hanto
setembro de 1964

Créditos:

Imagens 1, 2, 5: do próprio Nicolas Bouvier

Imagens 3, 4: Annemarie Schwarzenbach

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.