Há mais ou menos dez anos, tive meu primeiro encontro com Nicolas Bouvier (1929-1998), um escritor, iconógrafo e fotógrafo suíço para quem a viagem representava o cruzamento de todas essas atividades, e talvez sua própria força motriz. Em seu livro mais conhecido, L’Usage du monde (1963) – que me foi emprestado em 2011 por um amigo muito querido –, Bouvier relata uma viagem de Genebra ao Paquistão, que ele empreendeu nos anos 1950 a bordo de um pequeno Fiat e em companhia de seu amigo Thierry Vernet, cujas ilustrações acompanham a edição original. A princípio publicado por conta própria, esse livro, que ainda não tem edição brasileira, se tornou muito celebrado na Europa e hoje é tido como uma das narrativas fundamentais da literatura de viagem contemporânea.
Uns dois anos depois desse meu primeiro encontro, outro amigo querido me presenteou com um arquivo mp3 que continha uma longa entrevista de Bouvier, em que o autor, além de contar histórias e exibir registros sonoros feitos ao longo de suas viagens, também lia seus poemas.[1] Eu, que até então só conhecia o prosador-ensaísta das viagens, fiquei surpresa ao descobrir a faceta poeta de Bouvier, autor de uma única e pequena antologia de poemas: Le dehors et le dedans (1982). Essa antologia, como o próprio título sugere, é construída basicamente a partir da oposição entre o lado de fora – o dehors, espaço das viagens, do exercício da alteridade, da relação intensa com o mundo – e o lado de dentro – o dedans, espaço da rememoração e da reavaliação, muito marcado pela angústia da imobilidade e da constatação do tempo que passa. Nesses poemas, portanto, muitos tempos coexistem. Há o tempo do vivido, totalmente aberto ao atravessamento, e há o tempo da (re)elaboração do vivido; não por acaso, muitos são os textos em cuja assinatura há duas datas, e mesmo dois lugares.
Quando leio os poemas de Bouvier, frequentemente me lembro de um trecho de L’Usage do monde,aqui em tradução minha, em que o escritor-viajante evoca sua passagem pela Turquia e algumas noites dormidas ao ar livre:
“A leste de Erzurum, a pista é bem solitária. Grandes distâncias separam os vilarejos. Por uma razão ou outra, pode acontecer de pararmos o carro e passarmos o fim de noite do lado de fora. Aquecidos em um grosso casaco de feltro, um gorro de lã esticado sobre as orelhas, ouvimos a água ferver no fogareiro protegido por uma roda. Encostados numa colina, vemos as estrelas, os movimentos vagos da terra que vai rumo ao Cáucaso, os olhos fosforescentes das raposas. O tempo passa em meio a chás ferventes, conversas raras, cigarros, e depois a aurora se ergue, se estende, a codorniz e a perdiz se intrometem… e nos apressamos a gravar esse instante soberano como um corpo morto no fundo da memória, onde iremos buscá-lo algum dia. Pesando menos de um quilo, a gente se espreguiça, dá uns passos, e a palavra “felicidade” parece muito insuficiente e específica pra descrever o que nos acontece. No fim das contas, o que constitui o esqueleto da existência não é nem a família, nem a carreira, nem o que os outros dirão ou pensarão de nós, mas alguns instantes dessa natureza, motivados por uma levitação ainda mais serena que a do amor, e que a vida nos oferece com parcimônia, à medida do nosso frágil coração.“
Os poemas de Bouvier me parecem ser justamente a tentativa de “descrever o que nos acontece” quando somos atravessadas e atravessados pelo mundo, pelo outro, pelo desconhecido – um atravessamento que é intenso, mas se dá lentamente, de modo que os sentidos sejam capazes de apreender os “movimentos vagos da terra”. Esses poemas, assim, me parecem resultar do trabalho de alguém que se esforça para colar “instantes soberanos” no fundo da memória, e/ou que recorre a eles depois de anos ou mesmo décadas. São poemas que ora encenam o deslocamento, presentificando o dehors, ora refletem sobre uma experiência já pregressa, enunciada por uma voz que agora ocupa o dedans. Pode acontecer, ainda, de essas duas posturas coexistirem num mesmo poema.
Nesta pequena seleta, traduzo quatro [JRG1] poemas[2] nos quais identifico alguns dos aspectos mencionados nesta breve apresentação. Espero que estas traduções sejam capazes de evocar em você que as lê o sabor deste tempo dilatado e destes lugares onde jamais pisei, mas que sinto experienciar vivamente através dos versos de Bouvier.
[1] Trata-se do programa radiofônico Le vent des routes, concebido e exibido pela Radio Suisse Romande após a morte de Bouvier. Mais informações em: https://www.editionszoe.ch/livre/entretiens-avec-et-autour-de-nicolas-bouvier-2cd-le-vent-des-routes (em francês). É possível escutar esse programa integralmente no YouTube (ao menos até a data de publicação deste texto): https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_npBIXMmhUp1rrYZQ69bUe46QPZROlXXes.
[2] Os textos de partida foram extraídos de uma edição de bolso francesa: BOUVIER, Nicolas. Le dehors et le dedans. 4. ed. Paris: Points, 2007.
Le point de non-retour C'était hier plage noire de la Caspienne sur des racines blanchies rejetées par la mer sur de menus éclats de bambou nous faisons cuire un tout petit poisson sa chair rose prenait une couleur de fumée Douce pluie d'automne coeur au chaud sous la laine au Nord un fabuleux champignon d'orage montait sur la Crimée et s'étendait jusqu'à la Chine Ce midi-là la vie était si égarante et bonne que tu lui as dit ou plutôt murmuré "vas-t'en me perdre où tu voudras" Les vagues ont répondu "tu n'en reviendras pas" Trébizonde, 1953
O ponto sem volta Foi ontem praia negra do Cáspio em raízes pálidas rejeitadas pelo mar em diminutas lascas de bambu assávamos um peixe bem pequeno sua carne rosa ganhava uma cor de fumaça Chuva suave de outono coração aquecido pela lã ao Norte um fabuloso cogumelo de temporal surgia sobre a Crimeia e se estendia até a China Naquele dia a vida era tão errante e boa que você lhe disse ou melhor murmurou “vá e me perca onde bem quiser” As ondas responderam “você não volta mais” Trebizonda, 1953
Hira-Mandi Dernière échoppe ouverte dans la nuit de la ville guirlandes de piments samovar et phalènes Halo blanc de l’acétylène la barbe du patron est teinte d’un rouge espiègle Trois hommes vêtues de cuir lapent le thé vert versés dans leur soucoupe hautes pommettes brillant dans leurs faces cuivrées sous la frange de feutres informes pèlerins du Tibet chinois en route vers l’Inde gangétique pour accrocher leur moulin à prières aux branches du figuier du Bouddha puis s’en retourneront chez eux à petit souffle à petits pas par ces confins insurveillables qui passent au-dessus des nuages J’ai moi aussi rendez-vous avec un arbre il n’est en tout cas plus question de dormir quand la lune navigue comme une voile gonflée si brillante et véloce que l’âme elle-même en a une ombre Lahore, 1954-1982
Hira-Mandi Último quiosque aberto na noite desta cidade guirlandas de pimentas samovar e falenas Aura branca acetilena a barba do dono tingida de um ruivo travesso Três homens em vestes de couro sorvem o chá verde entornado em seus pires suas maçãs salientes brilham nas faces trigueiras sob a aba de chapéus amarfanhados peregrinos do Tibete chinês a caminho da Índia gangética pra pendurar suas rodas de orações nos galhos da figueira do Buda depois voltarão pra casa pouco a pouco passo a passo por esses confins insondáveis que seguem acima das nuvens Eu também tenho um encontro com uma árvore em todo caso não dá mais pra dormir quando a lua navega como uma vela inflada tão brilhante e veloz que a própria alma ganha uma sombra Laore, 1954-1982
Ulysse à Claude Au sud du bastingage il n'y plus rien jusqu'à la Terre Antarctique Léviathans et sirènes labourent ces prés marins ce portulan gaufré de vagues où d'immenses pans de ciel s'abattent en averses fourbues sans que Dieu lui-même en soit informé Chaque soir tu regardes la timbale du soleil plonger en hurlant dans la mer pommelée clins d'oeil des forts matous lovés dans les cordages Les espadons bleus filent devant l'étrave bande de bijoutiers en fuite Voilà des mois que tu n'as pas reçu de lettres tu es le dernier des parias à bord de ce navire le coeur rendu, un torchon d'étoupe à la main tout noir de souvenirs déjà tu t'abolis dans le tremblement des hélices tu écoutes le chant ancien du sang dans tes oreilles Caillots ensoleillés de la mémoire et dénombrement des merveilles quand tu savais vivre de peu ta vie t'accompagnait comme un essaim d'abeilles et tu payais sans marchander le prix exorbitant de la beauté Praz-de-Fort, 1978
Ulisses Para Claude Ao sul da amurada não há mais nada até as Terras Antárticas Leviatãs e sereias lavram os prados marinhos o portulano gofrado pelas ondas onde imensas porções do céu desabam em exaustas tormentas sem que o próprio Deus seja informado Todos os dias você vê o tambor do sol bramir ao mergulhar no mar encarneirado piscadelas dos garanhões enrolados no cordame Peixes-espadas azuis zarpando frente à proa bando de malandros em fuga Faz meses que você não recebe cartas você é o último dos párias a bordo do navio o coração entregue, um trapo de estopa na mão já todo escurecido de lembranças você se anula no tremor das hélices e escuta a antiga canção do sangue em seus [ouvidos Coágulos ensolarados da memória e inventário das maravilhas quando você sabia viver com pouco a sua vida o seguia como um enxame de abelhas e você pagava sem barganhar o preço exorbitante da beleza Praz-de-Fort, 1978
Le Cap Kyoga Au bout du cap, au bout de tout il y a ce temple shinto encadré par la pluie lourdes solives de châtaignier dont les veines épuisées absorbent encore une fois l'averse travail de charpente comme on n'en fait plus ? si vous voulez ! beau, pour ceux qui l'ont fait peut-être le temps de s'essuyer le front mais pour moi ? brouillon, phraseur, touriste et si affamé tout de même. Vieillard à moitié nu assis sur la dernière marche qui m'adresse un regard vert à travers ta tignasse d'étoupe spectacle intéressant sans doute baisse les paupières vieil homme ! toi et tes réponses vous venez trop tard ou trop tôt la saison des récoltes est passée l'espace hivernal et sa peur m'occupent entièrement c'est à la neige et à l'absence que je mendie à présent ma chaleur. orties et poussière cabanes usées par le vent et la mer jusqu'où – je vous le demande – faut-il aller traîner encore ce moi qui voudrait tant grandir. Tango-Hanto septembre 1964
O Cabo Kyoga No fim do cabo, no fim de tudo há esse templo xintoísta enquadrado pela [chuva densas vigas de castanheira cujos veios exaustos mais uma vez absorvem o temporal obra de madeiramento como não se faz [mais? pode até ser! bela, talvez, para aqueles que a fizeram ao limparem o suor da testa mas pra mim? confuso, fraseador, turista e tão faminto apesar de tudo. Ancião seminu sentado no último degrau que me lança um olhar verde através da cabeleira de estopa espetáculo interessante sem dúvidas baixe os olhos, velho homem! você e suas respostas estão vindo cedo ou tarde demais a estação das colheitas acabou o espaço invernal e o medo me ocupam [inteiramente é à neve e à ausência que agora mendigo o meu calor. urtigas e poeiras cabanas gastas pelo vento e o mar até onde – eu lhes pergunto – ainda será preciso arrastar este eu que queria tanto crescer. Tango-Hanto setembro de 1964
Créditos:
Imagens 1, 2, 5: do próprio Nicolas Bouvier
Imagens 3, 4: Annemarie Schwarzenbach