revista pupa

inverno / 2022

ed. 01

Literatura e biologia: uma reflexão a partir da obra de Clarice Lispector

Amanda Angelozzi

A literatura está em todos os lugares: outro dia, ouvi de uma fonoaudióloga que, através de conversas sobre crônicas, ela conseguiu encontrar as lacunas que faltavam no tratamento do seu paciente e que, antes, não conseguia acessar. Ou, quando eu fazia estágio e, através de contações de histórias, via as crianças desenvolverem sua linguagem, atenção e imaginação de maneira tão verdadeira e natural. Até na minha própria vida, o quanto a literatura a salvou, em alguma medida, desde que entrou nela.

Essas percepções que acumulo comigo conforme vivo e observo a vida me fazem perceber que a literatura está em tudo e em todos, da mesma forma que o DNA que nós, seres vivos, compartilhamos. É provável que tenha sido por isso que, para mim, foi muito fácil começar a notar as suas relações com o âmbito da biologia. Afinal, qual melhor campo interdisciplinar com a literatura que o do estudo da vida?

A literatura possui uma série de interfaces, como com a história, a sociologia, a filosofia e a psicanálise. Talvez por isso, integrar campos como o da biologia, para muitos, pareça algo distante e impossível por conta da biologia não fazer parte, exatamente, das ciências humanas, como o é a literatura. Apesar disso, eu me pergunto se, em menor ou maior grau, todas as ciências não seriam humanas.

É dessa interface, aparentemente improvável, que surgiram uma série de correntes críticas, como a Ecocrítica e o Ecofeminismo que, aos poucos, ganham o seu devido espaço nas universidades do Brasil. Também foram dessas tantas reflexões que surgiram algumas percepções minhas sobre a natureza na literatura, e mais especificamente, a respeito da natureza na obra de Clarice Lispector.

O afeto que a autora sempre demonstrou pela natureza é notável. Ao longo da vida, Clarice conviveu com muitos animais, como galinhas, cachorros e até macacos, nutrindo por eles grande admiração e carinho. Não só na vida, mas na obra, a presença constante dos animais se manteve. Uma das crônicas mais intrigantes de sua produção, penso eu, é a intitulada “Bichos (I)” – essa e outras crônicas podem ser encontradas no livro A descoberta do mundo –, publicada pela primeira vez em 1971, em que lemos:

“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis.[…] Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós.” (LISPECTOR, 1999, p. 332 e 334)

Vê-se que, para Clarice, existe uma linha que une o ser humano ao animal, ficando muito clara a percepção de que nós não somos diferentes deles, e que o contato com a nossa própria animalidade – abafada pelo processo civilizatório –, intermediada pelo encontro com um animal, é capaz de provocar grandes reviravoltas no edifício que chamamos de “eu”. Isso explicaria o volume de obras suas que focalizam os animais e seus encontros com os humanos, sempre reveladores daquilo que habita recôndito em nosso ser.

Contudo, não apenas por animais, a autora também parecia ser fascinada por plantas. Uma série de jardins, flores e vegetais das mais diversas estruturas e características nutrem e povoam sua obra que, vista por tantos de maneira metafísica e abstrata, é, se lida através desse viés, extremamente orgânica. Comparece na obra de Clarice, em uma série de momentos, o encanto pelos processos que, muitas vezes indecifráveis para nós, são tão naturais para as plantas, como é o caso da crônica “Primavera se abrindo”, de 1969:

O segredo destas flores fechadas é que exatamente no primeiro dia da primavera elas se abrem e se dão ao mundo. Como? Mas como sabe esta modesta planta que a primavera acaba de se iniciar? E as flores se abrem de repente. A gente está sentada perto, olhando distraída, e eis que elas vagarosamente vão se abrindo se entregando à nova estação, sob os nossos olhos espantados. E a primavera então se instala. (LISPECTOR, 1999, p. 238)

O “segredo da natureza”, a capacidade de saber quando se abrir para a primavera, é um mecanismo evolutivo que possibilita ampliar o sucesso reprodutivo, como nos explica Mancuso, no livro Revolução das plantas (2019). O biólogo Stefano Mancuso – que esteve presente na Flip 2021 em uma mesa sobre literatura e plantas junto com o escritor Evando Nascimento – ao tratar da memória das plantas, afirma:

“Seu sucesso reprodutivo e a capacidade de gerar descendentes são baseados, antes de mais nada, na capacidade de florescer no momento certo. Muitas plantas esperam certo número de dias para florescer, a partir da exposição ao frio do inverno. Portanto, são capazes de lembrar quanto tempo se passou.” (MANCUSO, 2019, p. 24).

As plantas ensinam em sua simplicidade, sendo a experiência da convivência e da observação fundamental e marcante ao ser humano, assim como o é a experiência com os animais e os seus instintos. O trecho da crônica “Um reino cheio de mistério”, de 1970, exemplifica essa questão:

“Entrar no Jardim Botânico é como se fôssemos trasladados para um novo reino. Aquele amontoado de seres livres. O ar que se respira é verde. E úmido. É a seiva que nos embriaga de leve: milhares de plantas cheias da vital seiva. Ao vento as vozes translúcidas das folhas de plantas nos envolvem num suavíssimo emaranhado de sons irreconhecíveis. Sentada ali num banco, a gente não faz nada: fica apenas sentada deixando o mundo ser.” (LISPECTOR, 1999, p. 318)

Presente em crônicas, contos, romances e até mesmo em um dicionário de flores, escrito pela autora em 1971, o fascínio de Clarice pelas plantas chamou a minha atenção e começou também a me fascinar. Eu, que antes via a literatura em cada respiro, também comecei a prestar mais atenção no quanto o reino vegetal está sempre pulsando ao nosso redor, às vezes secretamente, às vezes, nítido aos nossos olhos que, porém, nem sempre nos damos conta. Em cada fresta de asfalto, ele surge soberano, nos lembrando que não pode ser domado e exigindo o seu lugar de direito – milenar, muito anterior ao nosso na Terra.

A resistência do ser humano em se ver inserido na natureza, e não apartado dela, é consequência da persistência de sua visão ainda antropocêntrica, o que se mostra sintomático em uma série de aspectos. O desejo de dominação leva a um olhar seletivo, que alcança apenas aquilo que lhe convém, enquanto o restante perece. A crise ambiental global é evidente e resultado desse olhar cego aos derramamentos de óleo, queimadas generalizadas e animais em extinção, para citar apenas alguns exemplos daquilo que se tornou comum.

As plantas seguiram um caminho diverso na evolução, conforme observa Stefano Mancuso (2019), pois em vez de se movimentarem, escolheram manterem-se fixas e se adaptarem às adversidades; em vez de centralizarem suas funções em um sistema nervoso único, espalharam pelo seu sistema radicular suas informações, nutrição e inteligência, criando um grande sistema coletivo. Dessa maneira, a diversidade estrutural e evolutiva as afasta de nós, dificultando o processo de alteridade, já tão pouco exercitado pelos seres humanos:

“O resultado [da evolução] é que as plantas não têm rosto, membros ou, em geral, qualquer estrutura reconhecível que as aproxime dos animais, o que as torna praticamente invisíveis. Nós as consideramos uma mera parte da paisagem. Vemos o que entendemos e entendemos apenas o que é semelhante a nós. A alteridade das plantas depende disso.” (MANCUSO, 2019, p. 95)

A literatura está relacionada à vida, assim como a biologia. Dessa forma, esses campos me parecem entrelaçados, ainda que nem sempre isso esteja evidente para todos. Possivelmente, pelo próprio olhar cego do ser humano, dado os poucos estudos sobre a natureza na literatura, e mais especificamente, as plantas na literatura, ou pelo fato de, muitas vezes, o ser humano sequer conseguir enxergar as plantas como um outro ser vivo no seu próprio cotidiano.

As plantas na obra clariciana são tão importantes quanto qualquer outro ser humano e animal, sem hierarquias. Em Clarice, até mesmo um ovo em cima da mesa é um outro a quem se olha e se deixa transformar. A busca que nutre toda a sua obra pelo núcleo da vida, o âmago mais profundo de todos nós, passa por uma relação de igualdade com todos os viventes humanos e inumanos, que também fazem parte de nós de alguma maneira.

Assim, depois de cem anos de seu nascimento, vemos o quanto Clarice Lispector segue atual, uma vez que traz à tona que o ser humano não está e nem nunca esteve sozinho em sua existência. Surgimos por meio de um processo evolutivo complexo e extenso e, hoje, compartilhamos a nossa vida com diversos outros seres, todos tão importantes quanto nós.

O grande interesse da obra clariciana é contar atentamente a vida – o que a autora fez de maneira sensível e exemplar, com seu repertório extenso de mulheres, homens, crianças, idosos, animais, plantas e coisas. Talvez o exercício seja o de romper com a crise do olhar e, mais do que apenas ler sua obra, exercitar um olhar mais clariciano para o cotidiano, sem hierarquias, observando todas as formas de vida aos nossos arredores e notando que tudo está em tudo, compartilhando espaço, história, sensações e ancestralidade. Assim, as relações entre a literatura e a biologia se fazem manifestas, e mais ainda, a conexão entre todos os reinos se faz nítida, até mesmo os que parecerem mais improváveis, como as plantas e os seres humanos.

Referências bibliográficas

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas: um novo modelo para o futuro. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu Editora, 2019.

Créditos

Imagem de abertura: divulgação/internet

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Participam dessa edição:

Autoras/es:  Amanda Angelozzi, Ana Marta Cattani, Camila Assad, Carla Kinzo, Carola Saavedra, Caroline Veloso,  Daniel Choma, Edith Derdyk, Francesca Cricelli, Felipe Vernizzi, Gabriela Aguerre, Isabela Bosi, Julia Bac, Julia Milward, Juliana Ramos, Julia Pantin, Lara Galvão, Lucila Mantovani, Rodrigo Vianna, Sara de Melo, Surina Mariana, Tuane Eggers. 

Projeto editorial e edição geral: Sara de Melo; Projeto gráfico: Aline Shinzato; Comunicação: Jamile Anahata; Artista convidado: Felipe Vernizzi.